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Capítulo "O filho primogênito: Suas características e seus relacionamentos no contexto familiar" - Por: Adriana Fork Perez

(Páginas 113 - 130)

Livro: Wagner, A. (Coord.).(2002). Família em cena: tramas, dramas e transformações. Petrópolis, RJ: Vozes, 188p.

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Quantas vezes ouvimos os pais dizerem aos filhos mais velhos: “Acompanha o teu irmãozinho...", "ele precisa de mais atenção, pois ele é pequeno”, “não briga com ele, ele é menor!", ou "tu és o mais velho, deves dar o exemplo!"


Como será que o filho mais velho assimila estas frases? Serão elas facilitadoras ou trarão dificuldades para o relacionamento entre os irmãos? Que sentimentos estão envolvidos nesta relação? Isto acontece com todos os primogênitos?


Pois bem, buscando entender qual o papel desempenhado pelo primeiro filho dentro do núcleo familiar, surge a necessidade de aprofundar o conhecimento sobre as características, os comportamentos e a relação que o primogênito estabelece com os irmãos menores.

Este capíltulo dedica-se ao estudo do filho primogênito, procurando saber o que diz a literatura (bastante escassa no Brasil) e o que pensam os próprios filhos primogênitos a respeito de suas vivencias, de seus sentimentos e de seus conflitos no desempenho deste papel na família.

Características do primogênito descritas na literatura

​Ao buscar entender os comportamentos experimentados e demonstrados pelo filho primogênito, é possível constatar que como primeiro filho, ele apresenta uma série de características peculiares que o diferenciam das outras posições dentro da constelação fraterna. A começar pela própria definição.

Segundo o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (Ferreim, 1988), a palavra primogênito significa "aquele que foi gerado antes dos outros ou o que é o filho mais velho" (p. 529). Entretanto, o Dicionário Bíblico referido por Santos (1987), relata que primogênito é derivado do latim primogenitus e significa príncipe, o que toma o primeiro lugar, aquele que assume uma situação especial no sistema familiar. Assim, o significado bíblico nos sugere que, geralmente, o primogénito é tratado pelos genitores de modo singular, assumindo um papel diferenciado entre os irmãos.

Ao observar-se a expectativa dos pais ao longo da criação dos filhos, pode-se comprovar que as suas habilidades na forma de educá-los modificam-se e aprimoram-se através da experiência adquirida com o nascimento e o cuidado da prole. A maior diferença ocorre entre o primeiro e o segundo filho. Isto significa que a mãe e o pai aprendem a "arte da maternidade/paternidade" através das experiências adquiridas com o primogénito, desenvolvendo a partir dele, maior tolerância e sabedoria na educação dos outros filhos (Powell & Ogle, 1992). Além disso, deve-se levar em conta que os investimentos e atenções direcionados ao primogênito não vêm só dos seus genitores, como também de toda a família, isto é, tios avós, padrinhos, entre outros.

Pode-se imaginar quanta expectativa existe a respeito do primeiro filho? E se além de ser o primeiro filho, ele também for o primeiro neto, primeiro sobrinho... As expectativas se somarão? Como será a avaliação do primogênito sobre esta situação?

Considerando que ele é a primeira criança dentro do núcleo familiar, lhe competem vivências singulares até a chegada de um irmão (Ríos-Gonzáles, 1994). Constata-se, assim, que o primogênito é o único filho que possui acesso exclusivo ao casal parental por um período indeterminado de tempo. Tem, na maioria das vezes, somente os pais e outros adultos como referência, os quais terminam se envolvendo mais em sua educação.

Em contrapartida, estes adultos também depositam mais expectativas e esperanças no primeiro filho. Isto explica alguns registros encontrados na literatura, os quais relatam que os primogênitos tentam viver à altura dos padrões e expectativas dos pais, apresentando maior dificuldade em aceitar novas propostas e idéias que seus irmãos menores. Alguns autores e pesquisadores sugerem que o primogênito pode, freqüentemente, identificar-se com questões de autoridade e formas mais conservadoras de comportamento social que os irmãos, sendo, talvez, esta situação novamente facilitada pela intensa convivência que possui entre os adultos (Anton, 1991; Carte & McGoldrick, 1995; Powell & Ogle, 1992; Ríos-Gonzáles, 1994; Strean & Freedman, 1991).

Além disso, o primeiro filho também pode ser considerado mais competente que os demais e mais conectado com as vontades e desejos de seus pais. Possui maior poder durante a infância, porém, acata com maior facilidade autoridade, mostrando-se mais prestativo, consciencioso e responsável que seus irmãos menores. Parece demonstrar menor grau de agressividade, talvez por ser o filho que possui maior tendência a experimentar sentimentos de culpa (Bryant, referido por Mussen, 1988).

 

E o que será que o próprio primogênito pensa a respeito destas situações? Como será que ele reage frente às cobranças dos adultos? Serão eles mais prestativos e responsáveis que os demais? Será que realmente se sentem responsáveis pelo bem-estar de sua família? E em relação aos seus irmãos, como se comportam? Parece que alguns adultos o consideram diferente dos outros filhos. Será que ele se sente especial? Como ele percebe o papel que desempenha dentro da família e de seu grupo fraterno?

 

Para descobrir respostas a estas questões, fui perguntar diretamente aos primogênitos como se sentiam e o que pensavam a respeito. Assim, apresento a seguir os resultados do estudo que realizei durante o curso de mestrado em Psicologia Clínica (Fork Perez, 1999), o qual objetivou conhecer, do ponto de vista do próprio primogênito, que papel desempenha dentro da sua fratria, do sistema familiar e de como se estabelece o relacionamento entre ele e os outros irmãos.

 

Desta forma, tive a oportunidade de trabalhar com 12 primogênitos, 6 homens e 6 mulheres, de 17 a 24 anos, divididos em 2 grupos mistos. Realizei duas entrevistas, uma com cada grupo, onde foram discutidos, durante uma hora e meia, diversas questões que dizem respeito ao papel familiar que desempenham como primeiros filhos em suas famílias. Os assuntos debatidos entre os entrevistados foram agrupados em categorias por conteúdo, os quais apresento e discuto a seguir:

 

Relacionamento familiar e fraterno

O cuidado, as expectativas e as diferenças de gênero

 

O relato dos primogênitos revelou que no relacionamento entre o grupo de irmãos, podem ser observados sentimentos favorecedores e dificultadores da relação fraterna. Uma das discussões entre os entrevistados foi o fato de acreditarem ter maior carga de responsabilidades e cobranças por parte dos pais que os demais irmãos. Assim, ao perceberem as expectativas do pai e da mãe, alguns relatam sentir-se com a obrigação de não desapontá-los, o que acaba gerando algum tipo de sofrimento. Ríos-Gonzáles (1994), refere que o nível de expectativas dos genitores em relação aos primogênitos é maior do que em relação aos menores. Portanto, eles acabam sendo mais exigidos e recebem maiores encargos e responsabilidades que seus irmãos, como é observado na descrição a seguir: "Eu me sinto com mais carga de responsabilidade, por exemplo, passar no vestibular... agora ele (referindo-se a irmão menor) vai fazer vestibular e eles não estão com tanta expectativa do que quando eu fiz."

 

É curioso observar que essa responsabilidade é mencionada principalmente pelas primogênitas. Isto pode demonstrar que a expectativa social em relação ao papel feminino, ainda hoje, está associada à educação e cuidados, em diferentes âmbitos do sistema familiar. Além de serem as primeiras e terem maior dificuldade para abrir caminhos, soma-se o fato de serem mulheres. Ríos-Gonzáles (1994), comenta que se o primeiro filho é do sexo feminino, o padrão de cuidados, exigências e expectativas torna-se ainda maior.

 

No relato dos entrevistados pode-se observar que os pais tendem a superproteger as filhas mulheres, enquanto são mais permissivos com os filhos homens. Se todos os filhos são do mesmo sexo isto não ocorre com tanta intensidade, como se verifica neste exemplo: "Eu percebo que quando o primogênito é uma mulher, além de ter toda questão de ser mais velho, de ter que abrir portas, ter que abrir caminhos, vencer tabus, e barreiras, ainda tem aquele adicional de ser mulher... Mas quando tu também é irmão mais velho e tu é mulher a coisa é pior."

 

Contam que em muitas ocasiões acabam assumindo o papel de pai ou mãe frente aos irmãos. Realizam tarefas que poderiam ser feitas pelos genitores, como: cuidar dos irmãos, dar-lhes carona, orientá-los ou até mesmo criticá-los. Porém, estas questões podem propiciar desavenças entre a fratria. É comum os irmãos menores questionarem a autoridade do maior. Além disso, o mais velho pode sentir-se pressionado entre a expectativa e desejo dos pais e sua relação com os irmãos, com os quais passa a ter hierarquia diferenciada. Quando o primogênito ocupa o lugar de um genitor, distancia-se de seu subsistema fraterno (Anton, 1998). Esta situação, geralmente, propicia disputas, distanciamento e indiferença entre o grupo de irmãos. Ríos-Gonzáles (1994), salienta que, freqüentemente, as primogênitas recebem encargos e responsabilidades inadequadas para sua idade cronológica. Geralmente ajudam nas tarefas domésticas desde cedo, bem como no cuidado com os irmãos menores. Seu tempo tende a ficar, então, dividido entre as tarefas delegadas pelos genitores e o que lhes sobra para brincar e desfrutar da fase evolutiva que estão vivendo.

 

Por outro lado, quando os primogênitos são homens, a relação com os irmãos aparece diferente. É estabelecida com maior ênfase no companheirismo, não existindo tantos cuidados e proteção em relação aos irmãos mais novos, prevalecendo a amizade. Anton (1991), relata que também há diferenças de gênero significativas no modo pelo qual os irmãos mais velhos se relacionam com os menores. As meninas primogênitas tendem a usar técnicas como explicação e questionamento nas relações estabelecidas com a fratria, enquanto os meninos se utilizam do poder físico para dominar os irmãos menores.

 

O primogênito e suas tarefas frente ao sistema familiar

 

Entre os relatos dos primogênitos, pode-se detectar algumas "crenças" específicas no que concerne ao desempenho de sua função na família. Eles acreditam ser aqueles que abrem os caminhos na relação pais e filhos para os irmãos mais novos. Relatam com certa indignação a facilidade que os demais irmãos têm ao lidar com as mesmas situações que outrora foram difíceis para eles. Enfatizam que eles "abriram as portas", deixando o caminho livre para os mais moços. "Eu acho que a gente quebra as barreiras, que tem as maiores discussões para sair de noite... Depois que tu que discutiu primeiro, aí tu vê o teu irmão com a mesma idade ele nem discute, já tá fazendo." Observa-se que os primogênitos tendem a cobrar dos pais e reclamar para dominar os irmãos menores. Sentem-se injustiçados com o que consideram ser "regalias" proporcionadas aos mais jovens.

 

Eles também acreditam que devem ser exemplo para seus irmãos, como é evidenciado neste relato: "[...] Tu é a irmã mais velha, tens que dar o exemplo." A forma de falar, relacionar-se, agir, vestir-se, entre outras, pode ser copiada, sendo muito comum os irmãos imitarem-se, principalmente, se forem do mesmo sexo (Anton, 1991; Mussen, 1988). Assim, o mais velho ao ser considerado exemplo, serve em muitas ocasiões de modelo para a fratria. Este papel de precursor no subsistema fraterno explica, de alguma forma, os comentários que o irmão mais velho se permite fazer a respeito dos mais jovens. Devido à intensa convivência, são conhecedores dos gostos, vontades, intenções e sentimentos uns dos outros. Assim sendo, as opiniões e críticas feitas pelos primogênitos a respeito de seus irmãos, segundo Dunn & Kendrick (citados por Mussen, 1988), podem demonstrar que eles se interessam, cuidam e, muitas vezes, compreendem melhor que seus progenitores o que acontece com os irmãos menores. Assim, evidenciam-se situações onde o filho primogênito serve como referência, ou seja, como aquele que possui maior conhecimento e informações a respeito dos irmãos perante os pais.

 

Também podem situar-se como ponto de referência sob a ótica de "ser filho", fornecendo conselhos sobre o que é bom ou não aos irmãos. Como exemplo para esta questão, há o relato do irmão mais velho que é requisitado por sua mãe, a qual parece não saber como agir com sua irmã: "[...]A minha mãe pergunta muito... 'báh, que tua irmã fez isso, fez aquilo, quer ir a tal lugar...', o que que eu faço?" Pode-se entender que em situações como esta, os primogênitos são considerados pelos progenitores como aliados, estando mais próximos da relação parental. Situam-se, sob o ponto de vista dos pais, provavelmente como cuidadores e intermediários entre eles e o grupo de irmãos. Percebe-se, também, que esta situação pode ser uma tarefa árdua para os primogênitos, além de ocasionar dificuldades, uma vez que o grupo de irmãos pode se distanciar ou entrar em conflito com o mais velho.

 

Aprendizados adquiridos na fratria

 

Os irmãos ensinam e aprendem como portar-se em uma relação entre iguais, identificando semelhanças e diferenças. É nesta relação que manifestam seus afetos, seus desejos, interagem e reagem entre si, aprendendo também como cooperar, negociar, dividir e aceitar limites, entre tantas outras questões (Merrell, 1996; Ríos-Gonzáles, 1994). Os filhos primogênitos falaram das vivências que experimentam através do convívio com os irmãos e ressaltaram o quão importante é para eles, participar do seu subsistema fraterno. Também são evidenciados exemplos que referem aprendizados sobre tolerância, diferenças de gênero e diferenças interpessoais, explicando como a convivência com seus irmãos ensinou-lhes questões de grande importância para as relações extrafamiliares que experimentam hoje com amigos, namorados e colegas de trabalho. "O meu irmão é tri calmo... então eu aprendo com a calma dele"; "Eu aprendi muito sobre mulheres com a minha irmã. Agora quando eu tenho que esperar a minha namorada se arrumar eu acho que é normal, porque a mulher sempre demora mais para se arrumar!"; "A minha irmã é uma pessoa muito diferente de mim, e mesmo assim eu me dou bem com ela. Daí, eu aprendi que tu pode ser diferente e mesmo assim ser superamigo de alguém!"

 

Sentimentos e conflitos

 

Quando os progenitores e outros adultos comentam sobre o relacionamento fraterno, os conflitos que ocorrem entre os irmãos logo ocupam espaço considerável. As rivalidades e desentendimentos levam a atitudes intensas, ruidosas e, às vezes, até físicas (tapas, puxões de cabelo, mordidas...). Estas situações, sem dúvida, demandam mais atenção, preocupando os familiares que presenciam disputas entre a fratria. Por sua vez, as situações de convivência harmônica não despertam a mesma relevância nem demandam a mesma atenção, sendo consideradas o padrão de relacionamento "ideal" esperado pelos pais.

 

Durante o relato dos primogênitos, ficou evidente que sentimentos de raiva e ciúme são muito comuns no relacionamento fraterno. "Acho que é ciúmes. Assim como eu tenho dele às vezes, ele também sente..." (primogênito ao relatar uma situação de disputa com seu irmão). Se o irmão deseja obter "alguma coisa" que não têm: "Eu não sei se chega a ser bem ciúmes. Eu acho que é tudo uma questão de interesse. O pai ajuda com tanto, ele tem que ter essa sensação de equilíbrio entre os gastos." Estes sentimentos, denominados pelos entrevistados de ciúme ou raiva, podem originar conflitos entre o grupo de irmãos e, em algumas ocasiões, desavenças intensas.

 

Para os entrevistados, os motivos das disputas, por pertencerem a famílias de classe média, referiram-se especialmente a bens materiais. Situações como empréstimo de pertences como CDs e roupas, entre outros, são desencadeadoras de inúmeros conflitos. Estas desavenças, entretanto, dependem do estágio evolutivo vital em que se encontra o grupo de irmãos. Como por exemplo: "Acho que tem fases, né? Quando pequeninho por causa de um brinquedo. Depois por causa de roupa, depois por causa do carro... Nestes relatos parece evidente o quanto torna-se difícil para a fratria dividir os mesmos pertences e espaço físico sem entrar em atrito. Por outro lado, é muito curioso observar que após várias queixas, os primogênitos comentam que apesar de não gostarem que os irmãos usem as suas roupas e objetos, teriam muita dificuldade em não emprestá-los. A condição que os mais velhos exigem para ceder seus pertences é que os irmãos menores solicitem o que desejam, ao invés de fazerem uso sem permissão.

 

Formas para resolver conflitos entre os irmãos

 

Enquanto os conflitos eram expostos pelos filhos primogênitos, observava-se o relato de conselhos e propostas na tentativa de solucionar as desavenças com os irmãos, sem a interferência dos genitores. Há descrições de como a astúcia, a negociação, a separação dos quartos e até a utilização de uma corrente com cadeado em volta do armário, podem ser eficazes para amenizar as desavenças. Aqui, os irmãos procuram negociar o empréstimo das roupas e do carro: "Eu acho que nada como a negociação. Por exemplo, tu usa o meu casaco preto hoje, mas amanhã tu me empresta a tua calça"; "Lá em casa é assim, um dia um sai com o carro, outro dia sai o outro, ele saiu ontem, hoje o carro é meu". A decisão de trocar de quarto é outra tentativa: "Eu troquei de quarto exatamente porque não dava certo e eu queria ter mais privacidade..." Nem sempre estas tentativas são eficazes, porém esses esforços mostram como os irmãos são capazes de encontrar formas de diminuir os atritos entre eles.

 

Outras tentativas para solucionar as desavenças podem ser realizadas com auxílio dos progenitores ou psicoterapeutas. Há relatos onde esta interferência pode auxiliar e outros exemplos em que pode provocar mais dificuldades entre a fratria. Em relação à psicoterapia: "Eu penso o seguinte: às vezes tu tá dentro do conflito e tu não consegue ver isso... tipo assim, tá meio cega. Então a pessoa faz análise, psicoterapia... a terapeuta, te ajuda um pouco nisso." Outro exemplo referido é de como esta genitora conseguiu ajudar os filhos a resolverem seus conflitos: "Quando a gente era pequeno, minha mãe inventou um negócio de 'rodinha'. Quando tava todo o mundo no auge da briga, ela pegava todo mundo, sentava na sala e era cara a cara, tinha que dizer tudo o que estava acontecendo. Aí a gente foi crescendo e parou com a história da 'rodinha'. Mas ficou uma coisa nossa. Se tem alguma coisa, a gente chega e fala." Através destes relatos, pode-se apreciar as tentativas e soluções encontradas pelo grupo de irmãos, bem como pelos genitores, visando à diminuição de atritos. Entretanto, ao contrário do que vem sendo descrito, o comentário citado a seguir ilustra como a dificuldade no relacionamento fraterno pode ser amenizada se os genitores não interferirem: "Eu sinto que as coisas se resolvem bem melhor quando eu e ela... a gente discute sobre um negócio e resolve, do que quando a minha mãe vem e se mete. Quando meus pais vêm e se metem."

 

Papel que o primogénito ocupa em sua fratria

 

Sabe-se que questões referentes à idade, ao sexo, ao espaçamento e à posição ordinal, são situações únicas em cada grupo de irmãos. Os primogênitos, além de serem o exemplo, como foi descrito anteriormente, mostram-se cuidadores, orientadores, amigos, intermediários da relação entre a fratria e os genitores. Alguns descrevem que o papel desempenhado por eles na relação fraterna é o de orientar seus irmãos. "Eu acho que é de mostrar o que deve ser feito", "Eu acho que eu protejo ela muito e tento orientá-la também". Assim, percebe-se que sentimentos de cuidado e proteção parecem ser muito marcantes na vida dos primogênitos.

 

No entanto, outros irmãos mais velhos procuram ser mediadores e apaziguadores entre o relacionamento dos irmãos e genitores. Parece admirável, em alguns casos, o grau de comprometimento que os primogênitos possuem em relação ao bem-estar de sua família. Procuram auxiliar na relação que os irmãos estabelecem com os pais, intercedendo geralmente a favor deles: "Eu sou o mediador": "Eu tenho um pouco mais de preocupação em tentar apaziguar as coisas da família"; "Eu acho que é também ser o intermediário com os pais. Entre o interesse dos meus pais e o interesse delas". Ainda há outros que consideram seu papel como modelo e referência para os irmãos menores: "Eu acho que como todo o irmão mais velho, sou o irmão modelo", acho que por ser a mais velha, eu sou mais referência para falar alguma coisa para os dois" (referindo-se aos irmãos menores).

 

Questões como a amizade, a necessidade de ser o modelo para os irmãos, de poder orientá-los, bem como estar pronto e disponível para auxiliá-los quando precisarem, também são descritos como papéis desempenhados pelos primogênitos entrevistados. "Eu acho que é amizade!"; "Estar disponível... Caso eles precisem, a gente tá pronto para ajudar".

 

É muito curioso observar os papéis que os primogênitos dizem assumir na família, são todos de ordem positiva e produtiva. Isto significa que nos exemplos descritos não há referências de situações negativas ou desestabilizadoras da relação fraterna ou familiar. Não aparecem citações de condutas suscetíveis a críticas, nem há responsabilidade pela adoção de atitudes e papéis condenáveis dentro da fratria e da família. Acreditam agirem da maneira mais correta, justa e produtiva no relacionamento familiar, indiretamente condenando seus irmãos ou o casal parental pelos eventuais desajustes do cotidiano.

 

Como o primogênito define a relação com seus irmãos

 

No final das entrevistas, foi solicitado ao grupo que cada um definisse em uma única palavra a sua relação com os irmãos. Entretanto, alguns entrevistados apresentaram uma certa dificuldade em resumir esta interação. Portanto, deixo que as próprias citações expressem os sentimentos destes primogênitos: "Eu acho que é uma relação de irmãos, uma irmandade". "Irmão é irmão, é união, é compreensão, é aprender com eles, é tolerar eles, é ajudar eles, é tudo! Várias numa palavra!" "Eu acho que é tudo, amor... irmão é irmão! No meu caso é irmão. Irmão, não sei como definir a palavra irmão! Tem amizade, tolerância, cumplicidade..."

 

Outros, entretanto, conseguiram manifestar a relação através das seguintes expressões: "Amiga", "é uma relação saudável, amiga", "solidária", "protetora", "de união", "de cumplicidade" "de aprendizado", "de tolerância" e "de compreensão e amor".

 

O que há para ressaltar nestas definições é o fato dos primogênitos salientarem, durante todo o período da entrevista, que sua relação apresenta-se em muitas ocasiões permeada por momentos conflitivos e estressantes. Porém, quando foram solicitados a prestar uma definição para a relação fraterna, todas as respostas dadas têm conotações positivas, construtivas e ricas em afeição. Isto demonstra que apesar das dificuldades na relação, os primogênitos, ao falarem de seu relacionamento com a fratria, descrevem somente os aspectos favoráveis do seu relacionamento.

 

Considerações finais

 

Durante a realização deste estudo, observei que a relação fraterna ocupa uma discreta posição na literatura que descreve o relacionamento familiar. Observa-se que há maior incidência de escritos sobre as relações verticais (entre pais e filhos), o que pode indicar que as relações horizontais (entre o grupo de irmãos), mostram-se menos valorizadas. Os motivos podem ser vários. Ríos-Gonzáles (1994), salienta a lacuna existente sobre o assunto, referindo que se trata de um tema complexo, de difícil abordagem e possuidor de inúmeras interações em seu desenvolvimento. Muitos pesquisadores e terapeutas talvez não tenham percebido, ainda, a riqueza envolvida nesta forma de relação. Esta situação parece bastante curiosa, uma vez que a trama de relacionamentos que estabelecemos com os irmãos se dá desde o início de nossas vidas e permanece até a nossa velhice.

 

A partir dos conteúdos trazidos pelos sujeitos pesquisados percebe-se que os filhos primogênitos (principalmente do sexo feminino), tendem a cuidar de seus irmãos. Acreditam que devem ser o exemplo para os demais e, em muitas ocasiões, o ponto de referência entre os filhos, para seus pais. Mostram que aprendem muito no relacionamento fraterno sobre amizade, companheirismo, cumplicidade, negociação, semelhanças e diferenças, como resolver conflitos, como conviver com o grupo de iguais, entre outros. Sentem-se mais responsáveis e mais exigidos pelos genitores. Salientam receber tratamento diferenciado por parte destes, sendo em muitas ocasiões mais "mimados" que os irmãos, além de serem portadores de grande carga de expectativas. Relatam que, em muitas situações, sentem-se responsáveis pelo bem-estar da família, tendo maior poder de decisão que os demais irmãos. Referem também que tiveram que abrir o caminho e servir de exemplo para os mais novos. No entanto, nos relatos, queixaram-se de terem sido obrigados a amadurecer mais cedo, sentindo dificuldade em se desprender da família de origem. Os entrevistados também apresentaram auto-exigência elevada ao se compararem com os irmãos menores, o que permite pensar que estas características e cobranças podem acarretar melhor desempenho futuro na área de atuação profissional.

Este padrão comportamental também pode ser observado nas inter-relações que o primogênito estabelece quando adulto. Aquele primogênito que no seu relacionamento fraterno fez o papel de modelo ou líder familiar, provavelmente irá reproduzir esses padrões nos seus relacionamentos futuros. Como o primogênito tende a adquirir sucesso profissional, ocupa com muita freqüência cargos e postos importantes em altos escalões de empresas. Também podem tomar-se grandes líderes estudantis e políticos. Parece que isto ocorre naturalmente, uma vez que desde cedo os primogênitos foram bastante exigidos e ensinados a serem responsáveis. Strean & Freedam (1991), exemplificam esta questão ao referir que a maioria dos presidentes norte-americanos foram os primeiros filhos em suas famílias, e pesquisas revelam que 65% dos primogênitos alcançam níveis de inteligência superior (Ríos-Gonzáles, 1994).

 

Em relação aos conflitos e aos modelos educativos utilizados pelos genitores, torna-se importante salientar que os pais devem deixar que os filhos resolvam as disputas entre si (Carter & McGoldrick, 1995; Minuchin, 1990). Dessa forma, eles estarão permitindo que cada filho resolva seus desentendimentos sozinho. Caso contrário, através do seu posicionamento em favor de um ou de outro filho, poderão estimular ainda mais as desavenças entre os irmãos. Isto significa que a interferência dos genitores pode solucionar ou gerar conflitos em diversas situações, dependendo de como eles se posicionam frente às dificuldades do subsistema fraterno.

 

Outro aspecto interessante aparece na categoria onde os primogênitos definem a sua relação com os irmãos, pois eles descrevem um leque bastante amplo de dificuldades e conflitos. Entretanto, ao referirem-se ao grupo fraterno, suas definições aparecem destacando os aspectos considerados positivos em sua relação. Percebe-se que as situações favorecedoras, bem como a amizade, o companheirismo e os aprendizados, são mais valorizados e lembrados pelos primogênitos do que os conflitos. De forma contrária, na literatura revisada, é descrito que os genitores quando se referem ao relacionamento fraterno, tendem a lembrar e salientar os aspectos considerados negativos, como as disputas e as desavenças.

 

Uma última consideração, que acredito ser importante reporta à relação do primogênito no campo da psicoterapia. Curiosamente, dos 12 primogênitos entrevistados, 4 estavam ou já haviam passado por tratamento psicoterápico, ou seja, 30% dos sujeitos. Já na década de 70, Corman (1974), observou que havia um maior índice de solicitação de consultas psicoterápicas por parte de filhos primogênitos. Na década de 90, esta situação continua, segundo Ríos-Gonzáles (1994), podendo ser verificada na prática clínica atual. O interessante é que não se sabe ao certo se a procura por recursos terapêuticos é causada pela sensibilidade dos pais frente às manifestações de comportamentos considerados inadequados para esses filhos (talvez pela pouca experiência paterna/materna), ou se os primogênitos demonstrariam um menor grau de saúde mental e/ou insegurança, necessitando assim de orientação e de conselhos. De acordo com a vivência de vários colegas da área de saúde mental, e em minha própria experiência no atendimento a famílias, observo que, em muitas ocasiões, por ser o filho mais próximo dos pais, ou na ausência (física ou emocional) de um deles, o primeiro filho acaba sendo o depositário de angústias e dificuldades dos genitores, procurando, assim, orientação e atendimento psicoterapêutico individual e/ou familiar.

 

Portanto, considero importante refletir sobre a seguinte afirmação:

 

Ao maior, e em nome da primogenitura, é exigido que seja racional quando ainda é criança, lhe é imposto que dê bons exemplos aos pequenos, pede-se que sacrifique satisfações legítimas e até necessárias para o seu amadurecimento sob o pretexto de que "tu és o maior...", "deves dar exemplo...", "os outros são menores...". O conflito do primogênito é que lhe é exigido como se fosse adulto, quando não o é. Fica ameaçada aqui a liberdade necessária para que a criança seja criança de verdade (Ríos-Gonzáles, 1994, p. 301).

Acredito que a referência acima traz à tona uma situação bastante comum nas famílias, na qual é expresso o nível de responsabilidades e exigências que podem ser impostos por alguns adultos ao filho primogênito. Isto demonstra que muitos pais e mães não percebem o quão danoso para o desenvolvimento dessa criança este tipo de cobrança pode chegar a ser.

 

Referências bibliográficas

 

ANTON. I.C. (1991). A escolha do cônjuge - Motivações inconscientes. Porto Alegre: Sagra.

ANTON. I.C. (1998). A escolha do cônjuge - Um entendimento sistêmico e psicodinâmico. Porto Alegre: Artes Médicas.

CARTER, B. & McGOLDRICK, M. (1995). As mudanças no ciclo de vida familiar - Uma estrutura para a terapia familiar. Porto Alegre: Artes Médicas.

CORMAN, L. (1974). Psicopatología de la realidad fraterna. Barcelona: Herder.

FERREIRA, A.B.H. (1988). Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

FORK PEREZ, A. (1999). Padrões de relacionamento familiar - O filho primogênito. [Dissertação de mestrado não publicada. Porto Alegre: PUCRS.]

MERRELL, S.E. (1996). The accidental bond - How sibling connections influence adult relationships. New York: Ballantine Books.

MINUCHIN, S. (1990). Famílias - Funcionamento e tratamento. Porto alegre: Artes Médicas.

MUSSEN e col. (1988). Desenvolvimento e personalidade da criança. São Paulo: Harbra.

POWELL T. & OGLE, P. (1992). Irmãos especiais - Técnicas de orientação e apoio para o relacionamento com o deficiente. São Paulo: Maltese-norma.

 

RIOS-GONZÁLES, J. (1994). Manual de orientación y terapia familiar, Madri: Instituto de Ciencias del Hombre.

 

SANTOS. N.L. (1987). O primogênito - Estudo de dez casos. [Trabalho de conclusão de especialização em psiquiatria, Hospital das Clínicas, Porto Alegre.]

 

STREAN. H.S. & FREEMAN, L. (1991). Meu irmão, meu amigo - Como manter um bom relacionamento entre irmãos. São Paulo: Saraiva.

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Desenvolvimento Humano e Organizacional

Psicóloga, Psicoterapeuta e Coach

Especialista em TDAH

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